O escudo de calor com resfriamento líquido da Stoke Space

O foguete Nova terá dois estágios e será totalmente reutilizável. Mas, diferente de outros veículos de lançamento, ele não usará placas cerâmicas para proteger seu estágio superior, mas sim um escudo de calor com resfriamento líquido!

Não há dúvida para ninguém que acompanha notícias do setor espacial que foguetes totalmente reutilizáveis serão uma tecnologia essencial para que a nossa espécie consiga construir o futuro que há tanto sonhamos. Resolver o problema de viabilidade econômica inerente a veículos de lançamento terrestres vai abrir diversas portas.

Nos dias atuais, a SpaceX continua sendo a maior representante dessa visão de mundo. Calcada desde sua fundação na ideia de que os humanos deveriam se tornar uma espécie interplanetária, a empresa tem avançado cada vez mais no desenvolvimento do Starship, um veículo de lançamento gigantesco e totalmente reutilizável. A empresa já fez seis voos do veículo completo e caminha para um sétimo no próximo mês, com a perspectiva de um aumento significativo na cadência.

Bastante atrás nessa corrida, no entanto, estão diversas outras empresas que buscam desenvolver tecnologias semelhantes, tanto nos Estados Unidos quanto em outros países. A Blue Origin, por exemplo, está bem perto de colocar em operação um veículo parcialmente reutilizável chamado New Glenn, que tem capacidades semelhantes às do Falcon 9 e Falcon Heavy. Várias outras empresas chinesas buscam o mesmo, e não há dúvidas que algumas conseguirão o feito em um futuro não tão distante.

Veículos totalmente reutilizáveis em desenvolvimento, no entanto, são bem menos comuns no setor. E uma pequena empresa chamada Stoke Space e sediada no estado de Washington tem se destacado nisso com uma proposta bem diferente.

Nova: o foguete totalmente reutilizável da Stoke Space

Render do Nova, o foguete totalmente reutilizável da Stoke Space (Créditos da Imagem: Stoke Space)

O Nova é um foguete de dois estágios com cerca de 40 metros de altura (é possível que esse número tenha mudado, parece que fizeram uma revisão no design do veículo). O primeiro estágio, com 3,6 metros de diâmetro, é equipado com sete motores Zenith, que são movidos a gás natural e oxigênio líquidos. Esses motores utilizam um sofisticado ciclo de combustão em estágios de fluxo completo (Full-flow staged combustion), o mesmo dos motores Raptor da SpaceX. Esse ciclo é muito eficiente e com muitos benefícios para a reusabilidade, mas também notoriamente difícil de desenvolver.

Diagrama simplificado para explicação do ciclo de combustão do motor Zenith, que equipará o primeiro estágio do foguete Nova, da Stoke Space. (Créditos da Imagem: Dobra Espacial)

Motores de foguete precisam queimar quantidades exorbitantes de propelentes para cumprir seu propósito. No entanto, para fazer isso, é necessário usar energia armazenada de alguma forma. Isso pode ser feito de muitas formas diferentes em motores que cumprem muitas funções diferentes e com níveis de eficiência diversos. No motor Rutherford, do Electron, por exemplo, essa energia vem diretamente de baterias, que alimentam um motor elétrico responsável pelo bombeamento dos propelentes. Mas essa é uma exceção.

Em motores convencionais essa energia é coletada ao queimar uma pequena parte dos propelentes separadamente, dentro de pré-queimadores ou geradores de gás. Os gases gerados por essa queima incompleta passam por turbinas, que giram turbobombas que bombeiam propelentes para as câmaras de combustão.

A maior parte dos motores de propelentes líquidos desenvolvidos até hoje utilizam ciclos de combustão com apenas uma queima incompleta, seja ela rica em oxigênio ou rica em combustível. Em motores de ciclo aberto, como é o caso do Merlin 1D, da SpaceX, os gases da queima incompleta de combustível passam pela turbina e são descartados logo em seguida, sem passarem pela câmara de combustão. Em motores de ciclo fechado, como é o caso do BE-4, da Blue Origin, os gases da queima rica em oxigênio passam pela turbina e são injetados na câmara de combustão.

Em motores como o Zenith ou o motor Raptor, que equipa ambos os estágios do Starship, as coisas são um pouco diferentes. Estes motores são do tipo “Full-flow staged combustion“, algo como “Ciclo de combustão em estágios de fluxo completo”. Isso significa que eles utilizam dois fluxos separados de combustão parcial: um rico em combustível e outro rico em oxidante. Esses fluxos acionam turbinas que movimentam as bombas de propelentes, e os gases gerados são posteriormente injetados na câmara principal para combustão completa. Isso maximiza a eficiência, aproveitando cada gota de energia química disponível, mas ao custo de uma enorme complexidade técnica.

É realmente bastante complicado desenvolver motores desse tipo. E o Raptor é o único que já voou em um veículo de lançamento. Uma empresa desse porte apostando nessa tecnologia e já tendo realizado testes estáticos bem sucedidos é uma ótima notícia.

Apesar de impressionante, os motores Zenith não são a cereja do bolo deste foguete. A coisa mais ousada presente nele fica um pouco acima deles.

O segundo estágio do foguete Nova

Render do segundo estágio do foguete Nova, da Stoke Space. (Créditos da Imagem: Stoke Space)

Com 4,2 metros de diâmetro e um formato bem parecido com uma cápsula, o segundo estágio do foguete Nova carrega consigo uma inovação bastante interessante: um escudo de calor integrado a um motor.

Enquanto o Raptor, Zenith, Merlin 1D, BE-4 e muitos outros motores queimam parte do propelente para bombear os propelentes para a câmara de combustão, alguns outros coletam o calor gerado pela queima na câmara de combustão para fazer isso. É o chamado “Expander Cycle” ou “Ciclo Expansor”. Nesse ciclo, o combustível (geralmente hidrogênio) é aquecido ao passar por canais nas paredes da câmara de combustão, transformando-se em gás. Esse gás quente é então utilizado para girar as turbinas que alimentam as bombas de propelentes. Após o hidrogênio passar pelas turbinas, ele é injetado de volta na câmara de combustão.

O grande RL-10, que equipou foguetes como Atlas, Delta III, Delta IV, Titan e muitos outros (e que hoje equipa o ICPS do SLS), também utiliza este ciclo.

Motor RL-10 durante testes. (Créditos da Imagem: NASA)

O motor do segundo estágio do Nova tem o mesmo princípio de funcionamento, mas com uma importante modificação. Seu ciclo recebe o nome de “Expander Bleed Cycle“. Nesse ciclo, o gás não retorna à câmara de combustão, sendo liberado diretamente após movimentar as turbinas — daí o termo “bleed”. É o mesmo tipo de ciclo utilizado pelo motor BE-3U, do segundo estágio do New Glenn (falei sobre ele nesse vídeo aqui!).

O segundo estágio do foguete Nova combina este ciclo com um sistema de resfriamento para um escudo de calor. Durante a reentrada na atmosfera, o escudo de calor não utiliza materiais ablativos, como em foguetes tradicionais, nem placas cerâmicas, como na Starship ou no Ônibus Espacial. Em vez disso, o resfriamento é feito por hidrogênio líquido circulando por canais localizados atrás do escudo. Esse processo absorve o calor gerado durante a reentrada, mantendo o veículo em temperaturas seguras. À medida que o hidrogênio absorve o calor, ele aquece e passa para sua forma gasosa, passando pela turbina logo em seguida, o que cria um ciclo autorregulador: quanto mais calor absorvido, mais rápido o hidrogênio é bombeado para o escudo.

Diagrama de funcionamento do motor do segundo estágio do Nova durante o processo de reentrada. Note que não há fluxo para a câmara de combustão. Apenas para o escudo de calor e para a exaustão logo em seguida. (Créditos da Imagem: Dobra Espacial)

É basicamente o mesmo princípio por trás do funcionamento normal de um motor deste tipo. A diferença é que não há queima alguma, apenas a passagem de fluidos criogênicos para resfriamento contínuo. É simplesmente genial.

Teste estático do motor do segundo estágio do Nova, com múltiplas câmaras de combustão. (Créditos da Imagem: Stoke Space)

Além disso tudo, esse motor também é composto não por apenas uma câmara de combustão, mas sim dezenas delas dispostas em um anel. A exaustão do hidrogênio que passa pela turbina acontece bem no centro do escudo de calor. E esse arranjo, com tubeiras dispostas em um anel + exaustão, gera um efeito semelhante ao de um motor aerospike, otimizando a eficiência em diferentes altitudes. E o Controle individual de cada uma dessas câmaras de combustão dispensa a necessidade de um sistema complexo de vetorização de empuxo.

Localização da exaustão da turbina do foguete Nova. Note o efeito aerospike presente no render. (Créditos da Imagem: Stoke Space//Modificado por: Dobra Espacial)

Por dispensar o uso de materiais ablativos ou placas cerâmicas, que precisam ser substituídos ou reparados após cada voo, o segundo estágio do Nova reduz drasticamente a necessidade de manutenção entre missões. Além disso, o uso de hidrogênio líquido como agente de resfriamento e a integração desse processo com o motor criam um design robusto e eficiente. Esse sistema simplifica a preparação para lançamentos subsequentes, diminui custos operacionais e aumenta a frequência de voos, tornando a reutilização de estágios superiores uma realidade prática e economicamente viável. Claro, se tudo isso funcionar satisfatoriamente.

Render do segundo estágio do Nova colocando um satélite em órbita. (Créditos da Imagem: Stoke Space)

Há ainda um outro componente diferente neste foguete! A coifa integrada ao segundo estágio do foguete Nova elimina a necessidade de separar e descartar essa estrutura durante o voo, como ocorre em foguetes tradicionais ou até de precisar recuperá-la, como acontece com o Falcon 9. Essa escolha permite também que o segundo estágio não só coloque coisas em órbita, como também possa trazê-las de volta para a Terra.

Teste de voo do protótipo do segundo estágio do Nova. (Créditos do Vídeo: Stoke Space)

Embora ainda esteja em desenvolvimento, o Nova já demonstra ser uma proposta promissora de desenvolvimento de um veículo totalmente reutilizável, algo que parte do setor ainda tem dificuldades em aceitar. A mentalidade focada em reusabilidade e eficiência, que em muito lembra a própria SpaceX, combinada com avanços tecnológicos bastante originais, coloca a Stoke Space como uma empresa a ser observada de perto. Se suas ideias funcionarem como planejado, o Nova poderá ser um marco no acesso ao espaço, tornando o sonho de foguetes operados como aviões cada vez mais próximo da realidade.

Veja um vídeo completo do Dobra Espacial sobre o foguete!

Vídeo no canal Dobra Espacial: “Esse foguete é diferente de tudo que você já viu!”
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